17/02/2009

Shekinah no vagão

Fui de trem, e não demorou muito. Um grupo de grandes jovens negros, becadíssimos, entrou no vagão surrado. Alguns usavam ternos, com gravatas apertando a goela. Outros, camisas de seda, de linho. Calças de brim e sapatos brilhando. Cinco guerreiros da fé petencostal. Como brilhavam naquele vagão povoado por gente simples e cansada! E também por crianças animadas com o passeio. Tentava ler algumas poesias de poetas contemporâneos que ficavam ainda mais enigmáticas - arrastadas - com minha costumeira exaustão matinal. O grupo estacionou ao meu lado, e até gostei porque um deles usava patcholi, que encobria o chiclete fedorento do garoto inquieto logo a meu lado. O trem riscava tanto o trilho que seus salmos lidos pululavam como faziam as antigas agulhas dos vinis arranhados, ou como os novíssimos sinais de poeira dos cds. Também gostei porque esse culto, que julgava ser relâmpago, justificava o abandono da poesia, e me dava o conforto dos que são conduzidos, tendo o grupo que ocupar o espaço cênico para dizer a que vinha. O mais exaltado era o rapaz de camisa de seda, magro, negríssimo, com uma cicatriz no rosto. Podíamos examiná-lo à vontade, porque ele, ao nos ameaçar com o fogo eterno, olhava em linha reta, para um acusado fixo e modelado na porta de passagem de um vagão para outro. Observei também que ninguém os olhava, e pude, com tranquilidade, observar atores e públicos. Ele com certeza estava mais fagueiro porque sua roupa permitia isso, desvinculado do terno e gravata. Ele começou devagar mas chamou atenção imediata quando pipocou pelo vagão geral informando às pessoas que aquela era a palavra de Deus, e que deviam agradecer por isso. Que era Deus quem escolhia seus filhos pecadores para ouvirem suas palavras, e não nós que escolhíamos se devíamos ouvi-LO ou não. Era uma ameaça aos que preferiam olhar para o piso encardido, ou se entregar ao cochilo. Ele mandava ver, estava na cara que estava com o espírito santo encostado. Eu já apreciava aquilo com uma atenção generosa. Era meu orgulho de professor que rompia a indiferença dos passageiros com seu discurso e prestava atenção. O que estava em pé a meu lado falava num lamento bonito, quase um blues: é verdade Jesus, Ó Jeová, Aleluia Deus, desça Shekinah. Aquilo, aquela combinação de aceleração do discurso do exaltado com o louvor dos outros mais o plac ti plac do trem estava me ajudando a passar as estações, todas, que era parador domingueiro. Comecei a olhar assim, descaradamente, para cada um, observando seus gestos e seus jeitos, e nada, nem um olhar em resposta. Ver um rito daquele em pleno trem não trazia o perigo de que eles pensassem estar eu a um passo de me atirar aos seus pés para, com a Bíblia na cabeça, me entregar ao salvador. Eu curtia o ritmo, minha cada vez maior paixão pelo blues é que de certa forma me adestrava a audição. Meu ouvido atento colhia os lamentos roucos dos assessores. Até ia bem, se me mantivesse nisso. Vi, no entanto, que o rapaz leve, de tanto falar, tinha a boca seca, os lábios colavam, bem, sem mais detalhes. Talvez por isso não o olhassem de frente? Não, não, aquelas pessoas em sua maioria estavam habituadas a essas coisas, iam a pé-sujo, comiam mocotó etc. Tudo isso ia passando pela minha cabeça até que acenei para o vendedor de água suspeita, torneiral. Comprei, e repentinamente me levantei e avancei para ele, que ia para lá e para cá. Acho que queria mostrar nobreza. Ofereci a garrafinha, que lubrificaria seus lábios, mas ele passou por mim como se eu com minhas sete @s nada significassem, me deixando sozinho em pleno palco de alumínio. Ele estava em um transe. Tive que voltar para o banco disfarçando minha ação inútil, e mergulhei numa poesia estacionada há quatro estações, poesia fabricada, acho que já manjei como se constrói.
Ainda bem que era São Cristóvão.
De Autobiografia inventada