Mantenho a dignidade, postura que ficou nessa guerra pesada e invisível. Até o diabo se enviou para que eu beijasse seus dedos da mão esquerda. Ele estava num jovem de 25 anos, moreno, que repentinamente foi possuído, depois de afetar algum preceito. O jovem tirou a roupa e arrancou a cortina vermelha da salinha, aquela linda que eu trouxe do Ceará. Depois começou a falar como aquelas sombras de testemunhas falam na tv. Vi que a coisa era séria porque o jovem já não tinha mais suas próprias feições, superando Denise Stoklos, só que ele nem sabe o que é técnica de mímica. A criatura olhou enviesado para mim e perguntou o que queria, porque nunca vinha à toa. Ora, eu estava satisfeito com a visita do cavalo, porque me embebedara junto com ele e me divertia. Era só uma diversão assim, como dizer, profana. Agora tinha um lobo feroz rosnando para mim entre a cama e a parede. Busquei lembrar que talvez oferecendo algo, mas ele fez um movimento leve, e de sobrevoo, alcançou a outra sala, arrancando a tal cortina. Esperava que eu falasse. Por um átimo pensei em falar de Fausto, mas algo me impediu insinuando que essas forças não tem tempo de ler. Algo insistia que talvez eles venham de algum redemoinho ébrio, e comandam movimentos e ações para fora da reflexão. Ou talvez montam-se em desejos nebulosos - e morem em nuvens vermelhas. Lembrei do texto: o que foi, torna a ser. O que é, perde existência. O palpável é nada. O nada assume essência.
Era preciso tomar uma atitude, porque a cena era forte demais para silêncios.
Lembrei que tinha uma cachaça de Minas, antiga, que eu reservava para caipirinha de lima da Pérsia, e coloquei uma dose. Ele pegou o copinho, cheirou, não libou, e chupou o álcool sem perceber que ia junto uma pequena mosca, dessas que tem uma plumagem de asinhas brilhosas, só vi na hora. Dei-lhe um charuto que guardava da viagem do meu amigo Alex à Cuba, porque o outro fumei e quase morri, era para bocas de revolucionários e altos executivos. Ele tragou com tanta força que eu quase disse: cuidado, não trague! Mas eu estava mecânico demais na cambonagem tentando ver que hora ia baixar o pano, porque nunca vivenciara isso ( sempre fico lerdo ou cético em situações-limite). O charuto virou uma brasa de 5 cm e o cheiro do fumo cubano perfumou a sala. Percebi que a janela estava aberta e, apesar do avançado da hora, a vizinha do alto certamente espiava, ela sempre espiava as movimentações por suspeita secreta dos vizinhos, expiam principalmente por isso. Fui fechar a janela e, quando dei por mim, ele estava no jardim, tinha escapado pela porta sem que eu ouvisse a chave girar. A Lua cheia iluminava a tudo com uma precisão prata, e destacava ainda mais a capa vermelha que lhe adornava os ombros e o corpo marrom nu. Pronto, só faltava agora a cachorra atacá-lo. Nada. Ela deitou-se no fundo da casinha num silêncio curioso e inédito, com olhar baixo, acompanhando minha reverência ao desconhecido. Olhei para ele e disse, sussurrando, com respeito sacro: nada mais tenho a lhe oferecer. Menti, tinha uma bagana. Ele se abaixou com classe de tenista ao lado do gramado e arrancou um punhado de terra, justamente no lugar onde eu plantara as sementinhas do Vale do Matutu. Droga! Era um lugar cuidado como um bebê, pois eram sementes de uma árvore de flores espetacularmente lindas, lilás na ponta e amarela dentro. Um trabalhão para retirar da reserva.
Vi, no luar, que ele amassava a terra em sua mão curva, e que cuspira para transformá-la em barro. Depois me ofereceu a bolinha. Disse: Abre e peça. Feche e me dê. Suas frases imperativas impediam retruques. Peguei a bolinha, abri o barro úmido ainda tentando sentir alguma sementinha, e falei baixinho para a nesga da terra: -vá-se-embora-. Ele me olhou dentro do olho, como um romano, e riu em sequência, à época com trema... Foi o único momento que a cachorra rosnou e a janela da vizinha lá em frente se trancou. Ele se desfez, deixando o rapaz de joelhos, sangrando o nariz. O rapaz ruiu. Desinfetei a sala com enxofre, velho mas eu tinha (aprendi na Odisséia ), café e canela ( li no Verger ), enquanto o carinha consertava no banheiro as últimas sensações do senhor proibido, e esperava meu convite para que vazasse súbito.
De Autobiografia Inventada