05/02/2009

Transe

Uma sensação de força nos traz a viagem, de potência máxima do espaço, e também a do tempo. Quando estamos em circulação direta, e tantas vezes torta, em trânsito, nada pode ser extático na mente. Parece que um primitivismo nômade nos traz um novo antigo: nossa natureza, adaptada ou submetida à fixidade ( palavra feia! ). Há um ar de soberania sobre as ruas, as lojas, os parques e jardins. Se viajamos a esmo, isso assume uma proporção ainda mais alucinante: tudo parece estar disposto para nós. Circular estabelece um poder sobre esses lugares. Houve um tempo em que até mesmo confundia os nomes das cidades, num relaxamento total, num deixar para lá toda e qualquer referência. A rodoviária, o aeroporto e a estação ferroviária, o porto, são portais sagrados. Tudo passa a ser uma novidade inesperada e tudo é passível a ser desfeito, as rotas, os horários, tudo. Percebe-se bem essa sensação pela ausência dela também, quando estamos prontos a partir e abandonar uma cidade e, de repente, temos que recuar por algum problema. Voltar ao quarto que abandonamos nos dá uma sensação ruim, de retorno, a casca. Retorno é a antítese do movimento, é sufocante quando regressamos sem desejar e percebemos que aquele espaço já não é mais nada. Isso aconteceu algumas vezes comigo, e sempre tinha que mudar de hotel, ou, pelo menos, de quarto. Quando partimos, e sentimos o vento na cara, abandonamos toda e qualquer possibilidade de ver o local como espaço estático, e aí temos essa sensação de nômade. É um vigor, um transe, e realmente só quem a vivenciou poderá entender isso. Lembro que uma vez não conseguindo sair de Ibitipoca ( lugar apreciado demais da conta! ) por não conseguir o ônibus enfrentar a estrada, fui ficando sem espaço na pequena parada. A bolsa, a garrafa d'água, a mão no bolso e o olhar de adeus que dava para tudo faziam-me crer que tinha que sair dali naquele instante. Um caminhão cheio de coisas na carroceria, sacos de milho, de batatas, umas ferramentas cobertas, foi parado pelo meu vigoroso aceno. O motorista não acreditava que eu desejasse subir embaixo de chuva naquele espaço perigoso. Mas queria. Aquele era meu portal e, encharcado com mais três casais, que eu animara a subir também, desci em pé na boléia por 30 km vendo a cortina de chuva nas montanhas azuis e cinzas. Essa sensação de liberdade nem uma Toyota equipada com Vivaldi, cristalino, me daria. Cobri minha bolsa com uma lona amarela surrada, tirei a camisa e senti o corte da chuva, suas lambadas, sua força contra minha barriga quase normal, pela dieta de 10 dias de pequenas porções de arroz integral sem sal. O caminhão escorregava na lama, no precipício, e nem isso, esse medo, estragava minha sensação imperiosa. Lembro que via do alto as misturas de luz da Mantiqueira, e a invasão rápida do meu olhar sobre o fim de tarde dos moradores da montanha, o cheiro do feijão com paio. Homens carregando às pressas a lenha que molhava, meninas de vestido de chita, coloridos, repentinamente saltitantes, senhoras com expressão de invencíveis. O caminhão patinava na estrada lisa e, vez por outra, olhava os casais encolhidinhos embaixo da capa da barraca, rindo como se fizessem uma peraltice. Eu apenas amava a mim mesmo, e eu era aquilo tudo junto, eu estava possuído de um desejo absoluto. A ele aderira no êxtase das imagens que o vento e a chuva embaçavam.