11/06/2009

Viagem

Até procurei fios para ligar essa história, caro G., mas minha história é um fio desencapado. Qualquer ligação ou encaixe resultará em um culto circuito, o acaso irremediavelmente se agregou a mim. E em texto de blog, o tempo do texto, você sabe melhor que eu, um blog quer, mas não pode, dar a réplica a um autor. Os comentários acariciam ou arranham o que podem, e o que não podem. O outro – essa presença.
Deixar os lugares é um movimento inviolável, acima de qualquer receio ou retidão, é se atirar pelo mundo, buscá-lo, e a dicção do mundo é o movimento, a saída, o caminhar. A literatura também me fez viajar tanto que até me levou à exaustão.
Passar por entre outros estados, outros lados, pórticos de outras civilizações. Houve épocas em que o desejo se estabelecia mais. No que ficou em relatos de personagens, no nosso imaginário, Ulisses ( o que porta o deus ) e Dante que nos narra em painéis sinestésicos o homem, o seu espírito sobre a realidade.
Pode-se olhar o tempo, que faz sua viagem própria, sem se contaminar ( o que assusta ).
Os grandes navegadores, como num desespero idílico, registrando em palavras os dias que lhes passam. Mas cabe dizer que o que passa pelo viajante isto também o torna. Entorno de olhadas agudas para as pedras em ruas estreitas de uma Paris, Benjamim deixa-se sucumbir em trânsito, no pânico da fronteira, ele que tão bem sabia ler a vida. O monstro austríaco não lhe alcançou. Alcançou a todos nós, mas não a ele.
As viagens, as fronteiras ( dos perigos ). Eu também viajo e como tal que estado novo sempre me dá o vôo, a linha de ferro, o asfalto, as águas em que flutuo. As imagens da água, terceiras visões da imanência, a viagem se esvai, vai e vem em ondas de lagos. Culturas nas dimensões dos espaços ocupados, os nórdicos, pagãos, como que os vi por sobre as longas pernas divisarem infinitos para trás – desfiles de corso. E a Roma dos césares petrificada em aragens de monumentos, em terrestres alusões aos tempos tão fortes que nos ficam impressões disformes. Ou quando mudam - como animais migrando - minhas vontades de ver o desconhecido.
No que então agora vejo Anchieta se curar de doença grave com os ventos salinados do Pacífico, preparando-se para salvar - como um Sócrates - o que já estava salvo. Ele que entra em aldeia antropófaga para na hora h dar extrema-unção ao índio-comida. Anchieta deus de si, o que transforma tupã em Diabo. Mas eu pedi perdão a Cunhambebe em uma prece-poema.
Há quem veleje e narre sua apostadas corridas, cruzadas pessoais. Há as três margens para o poeta cavaleiro que lê o cântico dos simples, o Rosa das terceiras margens, do pai na canoa, do diabo em seu redemoinho, das transmutações trecheiras que o amor produz, ou induz, em faces, desenhos do olhar. Descemos com os criadores a lugares desnavegados, cruzadas de navios, bandeiras negras e piratas que somos de nosso eixo, roubamos o ar - as viagens nos elevadores da lembrança - o que regurgita e revela em pátria nossa - cria de viagens - a nossa própria exploração. Ação de ontem, tempo de estio. A América do Norte num carro, o narrador como que susta o sonho que ainda guardava, despedaçados os sonhos do país da liberdade, que é o país da grana, Henry Miller inverte a América e seu deus dólar para saborear a Ásia. Simulacros de luz em travessia noturnas de trem, a Sibéria glacial, o samouvart pelando para derreter a língua da neve, a resistência então do humano, o animal que mais viaja, que fornece, que conhece, invade, constrói e devasta. Os vinte anos da volta, os tapetes da espera, a espora do tempo.
Literária viagem que me vem em flashes, em mantras nas malas, em coloridas e miseráveis índias, ou o mago, magno, imagístico dom do que comanda aliados em milhares de exemplares, Borges por entre todas as fronteiras, sedutor do caos-labirinto em suas sete noites. Rimbaud acaba por colorir suas vogais todas de vermelho sob o sol e chega a lugares onde nunca se vira branco Rimbaud ( o nauta ).
Hemingway nos dá roteiros onde não se saboreiam cheiros de café em tardes geladas de Paris, a falta de dinheiro o faz burilador de frestas e criador de imagens inéditas.
Não conto as viagens internas. Para as viagens é preciso lugares, vegetações, extemporâneos trejeitos do que parecia estar para sempre ali. As viagens são sensações externas e delas se narra as amarras mínimas de um ato esguio. No solavanco ultra-rápido da palavra. No seu estalo. E o sal, o fogo, o ar. Os fortes incrustados nas nossas mais belas praias, ali chegaram eles que seríamos nós, todos raças estrangeiras. O Brasil é para ser chegado, é o país de chegada que nasci, me vendo nele sempre narrado num exotismo sem fim. Viagem circular, quadrada, quebrada, em montanhas. O meu idioleto incapaz de balbuciar algo de certo nestas andanças, ou minha incapacidade de sentir o sentido por outro, por outros criado. Tapam suas vergonhas, mas não o caráter, deveria ter escrito Caminha, as matas que brotam gente perfeita. Acabo, como Miller, renunciando a meu sonho de Brasil e cito, forçado por ser antenado a isso, o Velho Mundo. A Itália-moura de meus avós e do meu nariz. O cheiro do ar não me impede visões menores. Pise no freio que a viagem se perpetua, se insinua, que cercado sempre fico zonzo - pois até no sono me visitam. Recordações do não vivido. Eis o texto.
Pedaços de viagens que me infestam a mente. No sonho meio que solto em imagens inéditas. O transiente sinal do sonho também tempera todo o maiúsculo desejo de se eternizar. Basta então mar aberto para aspirar o futuro - símile coesão com o que é. Como então sonhei que volitava por templos dos Maias repousados em eternos mistérios, em seus ministérios coloridos. A civilização esquecida como se avistada em panorâmicas espaciais me tragando em ruídos de sombra. Os sonhos capturando intenções perdidas inauguram junto a visões fellinas sentimentos sem nomes. Oníricos portais, os postais de meus vislumbres. A literatura fotografa sensações como se houvesse à porta um outro Fausto tão bem acompanhado. Chaves que trancam os cadeados do mundo do comum.
A viagem no passado do Casmurro ressentido, perdido no “viajar de uma viagem” sem volta pelos meandros do outro, publicando a solidão e a melancolia - febre estranha à nossa natureza tropical, Casmurro europeu - ex-suburbano.
Artaud em atalhos pela Síria nos acena novos antiqüíssimos deuses.
Outra rota, outro atalho, outra via não vista, volto que nublada já ficava a minha face: como que dizem, maldosos, que o poeta-filósofo da alegria era sisudo e triste? Ele que transita pelas pensões da Europa demolindo com o texto altivo as próprias edificações partidas da mentira. Iconoclasta sem bagagens, Federico que se recusa a adorar ao deus fogo em noite de inverno italiano, diga-se, então, por Ovídio no ancestral do português: Ut desint uires, tamen est laudanda uoluntas. Diga-se então pelas musas de Camões ou pela hybris avançada. Viagem longa a de Nietzsche ( o enforcado do tarô ? ); o andarilho das pensões gargalha os 10 anos de desrazão ainda mais vilipendiados pelos “seus” críticos urubus. Como seria esse olhar? Olhar íntimo o de Nietzsche. O personagem Cortázar também alpinista em Ryuela ( diz Nietzsche: da montanha as torres da cidade, como as vejo pequenas ) entre janelas de edifício portenho, tábuas bambas atadas a peitoris abarrotados de roupas, ou o comum na corda bamba derrubado pelo risonho diabo? O tempo buscado em jogos de calçadas ou o rastrear o ar atrás do passado num compostura sôfrega, atrás de um jogo sutil em papel japonês, no feixe magistral do texto de Proust que embrulha em marfim nomes e emoções à toa e vê Florença através de Giotto.
À toa, em tom de convés, a rapariga scomparsa, tudo assim meio que tudo no meio do papel, tela de escritor, pincel do olhar. Olha que interminável seria a descrição do descrito, mesmo ocultando-se quase tudo, trazendo a granel o sugerido, o cerzido, tecido em letras.
E me enrolo em pergaminhos esquecidos, em porões de bibliotecas, em olhares venais de traças e troços que serão traças, porque não se desfazem as traças quando se lê o livro esquecido, o poema soterrado no pó, o texto escondido por manchas, máculas do tempo. Mágico o texto no seu picadeiro de sílabas faladas ao alto. O livro liberto da garrafa, do mofo, da fama. Nenhum guru, nenhum sábio, nenhum leitor, nada o possui. Só, o livro, esconde para si estórias, maravilhas de dias, espetáculos, estradas, ambientes, campos, sertões e sóis.
E mínima, a minha visão ainda se entrega a tentar sem resultado lembrar o mais belo.

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