Nas novelas e seriados os figurantes aparecem, andam pelas ruas, estão nos bares, participam e servem às personagens. Não expressam reação. Acenam com a cabeça, em geral com gesto afirmativo, nos diálogos. São seres afásicos, sem fala e sem nenhuma expressão. O mutismo beira o ridículo, mas o padrão em apresentá-los assim domestica o olhar do consumidor do entretenimento. Ninguém nota ou reclama de sua nulidade. Uma vez vi uma cena numa novela dessas de grande audiência. Uma mesa gigantesca. Empresa. Reunião. Debate acalorado entre duas personagens e o restante. Uns oito figurantes apenas simulavam uma intenção de fala, ou de existência. Eram sombras necessárias para compor o cenário.
Simulacros de homens que se mexiam pouco, permaneciam inertes.
Há algo de comum nesses bonecos de carne e nós. Estaríamos nos tornando figurantes em todo esse processo?
Um país que se simula: grande, rico, diversificado, amável e belo, mas sempre com a mão na cumbuca do pequeno. Um país de nós invisíveis.
Acenamos com a cabeça, não para que alguém perceba, mas apenas para marcar uma posição inútil para nós mesmos. Diante do jornal televisivo e impresso, do blog opinativo, do site carregado de propagandas, ficamos concordando ou discordando no silêncio apenas para mostrarmos que temos ainda alguma opinião. Sabemos antecipadamente que mesmo que fizéssemos explodir pelas janelas nosso grito de derrota ou de vitória pouco ou nada se alteraria. Já foi-se o tempo das foices e martelos, tempos em que também se transformavam a realidade em um opinião truncada e única, onde uniformes eram produzidos para todos os figurantes. Já se foi embora o desejo de modificar tudo, com ocupações de ruas, organizações de classes e sem classes, debates, proposições que produziram sempre lideranças raposas, prontas para definir o melhor, prontas para decidir o caminho.
Estamos hoje numa espécie de regime de sindicato, fechado, verticalizado, e enquanto os líderes decidem pelo pior ou pelo melhor, observamos acenando com sim ou com não com a cabeça. Nosso envolvimento está na prestação de contas do espetáculo do desenvolvimento que nos ofertaram, e no desligamento geral que se aproxima com o fim de semana, onde decretamos nosso habeas corpus desse cotidiano maçante.
A realidade, inventada, fica apenas para as personagens.
Nossa torcida está em que alguma fala se aproxime daquilo que desconfiamos ser o melhor, como se nosso pensamento, aprisionado pela ineficácia, buscasse um consolo de opiniões parecidas e pronunciadas pelas lideranças forjadas por si mesmas.
Estamos no umbral das salas decisórias.
No momento em que a comunicação é mais exaltada, no momento em que a tecnologia nos convida a opinar, eis que surge um silêncio torto, um ar cinza que se assoma a uma indiferença figurante. Nenhum escândalo pode nos afetar porque não estamos no patamar das somas astronômicas. Os bilhões pra lá e pra cá fazem parte de uma fala que não está em nosso roteiro de gestos. Nós não alcançamos a sofisticação maquiavélica dos que manipulam corações e mentes. Nós não trabalhamos caras de pau em nenhuma marcenaria de subsolo. Nossos castelos são no máximo a pizzaria da esquina.
Nós ficamos na estrada pedindo carona enquanto as personagens passam zimpando com seus corcéis dourados. Os líderes que se agridem e lançam verdades e escândalos uns contra os outros estão no mundo de outro diretório. As somas e as decisões estão nas salas dos poderes construídos por um discurso incansável, e esse discurso enfadonho nos afasta, apenas nos faz cumprir tabela. Estamos nessa sociedade, mas nosso apelo e nossa reivindicação parece sempre querer girar ou gerar esse sim ou não descompromissado com a cabeça. Não deixamos marcas, nos cansamos delas. Nossa exposição foi excessiva: queríamos mudar o país e isso resultou não na revolução de costumes ou reflexões elaboradas sobre a sociedade. Resultou em nosso cansaço.
Nós nos envergonhamos de ter entregue nossa juventude a uma causa que era apenas uma troca de grupos. Nós nos envergonhamos do engano ardiloso contra nossa boa fé. O sindicato do poder nos vampirizou o desejo.
Os líderes que inflamos e inflamamos usaram a escada montada pela nossa energia e foram lá assumir o posto de decisão do que já estava pronto: por isso eles falam, defendem absurdos, distorcem qualquer lógica e adulteram os sentimentos. Por isso agora ficamos – entediados- convidados a continuar um jogo em que pensávamos ser juízes, mas revelados apenas como figurantes montados na expressão mecânica do figurante: um tumulto surdo fazemos, um acenar indiferente. Não podemos renunciar integralmente a isso, porque fomos nós que ajudamos a criar e sustentar esse cenário. Fomos nós que seguimos a estrada do brejo onde um belo atoleiro nos cerca.
Em vez da mudança a inércia. Resta-nos lançar um número numa caixa de Pandora que apita depois de nos mostrar a imagem de alguém – tudo muito asséptico.
De alguma forma, no entanto, o aceno do figurante demonstra um antítese da criação da cena. O seu silêncio demarca que há um estranhamento no texto. O seu jeito sem jeito faz a marcação da cena artificial em demasia, a sua presença inócua não confere à cena nenhuma integridade, enfraquece a busca pela verossimilhança. O movimento do figurante está na contramão do enredo, uma narrativa castrada, uma vontade escondida de anulação da cena.
Se somos figurantes nesses processos, se somos apenas acenos de contrariedade controlada ou de afirmações sem fulgores, se somos isso nos processos arrastados que comandam, somos também uma força neutra, uma saída à francesa de uma aristocracia esfarelada, de um discurso formulado para a assistência vazia ou muda.
Pode ser que as personagens busquem a deixa do aceno de cabeça dos figurantes e pode ser que eles não estejam mais lá para que a cena se dê.
O que queremos mesmo é nossa vibração de volta, a solidão - antídoto da aglomeração das massas guiadas. O que queremos mesmo é retomar nosso prazer, longe desses líderes estranhos e estrangeiros. Para longe do espírito de gravidade. Eis que queremos respirar um ar de montanha.
O que queremos mesmo é abandonar essa novela chata, essa direção torpe. Abandonar essa farsa.
O que queremos mesmo é calar essa cena mal escrita .
Simulacros de homens que se mexiam pouco, permaneciam inertes.
Há algo de comum nesses bonecos de carne e nós. Estaríamos nos tornando figurantes em todo esse processo?
Um país que se simula: grande, rico, diversificado, amável e belo, mas sempre com a mão na cumbuca do pequeno. Um país de nós invisíveis.
Acenamos com a cabeça, não para que alguém perceba, mas apenas para marcar uma posição inútil para nós mesmos. Diante do jornal televisivo e impresso, do blog opinativo, do site carregado de propagandas, ficamos concordando ou discordando no silêncio apenas para mostrarmos que temos ainda alguma opinião. Sabemos antecipadamente que mesmo que fizéssemos explodir pelas janelas nosso grito de derrota ou de vitória pouco ou nada se alteraria. Já foi-se o tempo das foices e martelos, tempos em que também se transformavam a realidade em um opinião truncada e única, onde uniformes eram produzidos para todos os figurantes. Já se foi embora o desejo de modificar tudo, com ocupações de ruas, organizações de classes e sem classes, debates, proposições que produziram sempre lideranças raposas, prontas para definir o melhor, prontas para decidir o caminho.
Estamos hoje numa espécie de regime de sindicato, fechado, verticalizado, e enquanto os líderes decidem pelo pior ou pelo melhor, observamos acenando com sim ou com não com a cabeça. Nosso envolvimento está na prestação de contas do espetáculo do desenvolvimento que nos ofertaram, e no desligamento geral que se aproxima com o fim de semana, onde decretamos nosso habeas corpus desse cotidiano maçante.
A realidade, inventada, fica apenas para as personagens.
Nossa torcida está em que alguma fala se aproxime daquilo que desconfiamos ser o melhor, como se nosso pensamento, aprisionado pela ineficácia, buscasse um consolo de opiniões parecidas e pronunciadas pelas lideranças forjadas por si mesmas.
Estamos no umbral das salas decisórias.
No momento em que a comunicação é mais exaltada, no momento em que a tecnologia nos convida a opinar, eis que surge um silêncio torto, um ar cinza que se assoma a uma indiferença figurante. Nenhum escândalo pode nos afetar porque não estamos no patamar das somas astronômicas. Os bilhões pra lá e pra cá fazem parte de uma fala que não está em nosso roteiro de gestos. Nós não alcançamos a sofisticação maquiavélica dos que manipulam corações e mentes. Nós não trabalhamos caras de pau em nenhuma marcenaria de subsolo. Nossos castelos são no máximo a pizzaria da esquina.
Nós ficamos na estrada pedindo carona enquanto as personagens passam zimpando com seus corcéis dourados. Os líderes que se agridem e lançam verdades e escândalos uns contra os outros estão no mundo de outro diretório. As somas e as decisões estão nas salas dos poderes construídos por um discurso incansável, e esse discurso enfadonho nos afasta, apenas nos faz cumprir tabela. Estamos nessa sociedade, mas nosso apelo e nossa reivindicação parece sempre querer girar ou gerar esse sim ou não descompromissado com a cabeça. Não deixamos marcas, nos cansamos delas. Nossa exposição foi excessiva: queríamos mudar o país e isso resultou não na revolução de costumes ou reflexões elaboradas sobre a sociedade. Resultou em nosso cansaço.
Nós nos envergonhamos de ter entregue nossa juventude a uma causa que era apenas uma troca de grupos. Nós nos envergonhamos do engano ardiloso contra nossa boa fé. O sindicato do poder nos vampirizou o desejo.
Os líderes que inflamos e inflamamos usaram a escada montada pela nossa energia e foram lá assumir o posto de decisão do que já estava pronto: por isso eles falam, defendem absurdos, distorcem qualquer lógica e adulteram os sentimentos. Por isso agora ficamos – entediados- convidados a continuar um jogo em que pensávamos ser juízes, mas revelados apenas como figurantes montados na expressão mecânica do figurante: um tumulto surdo fazemos, um acenar indiferente. Não podemos renunciar integralmente a isso, porque fomos nós que ajudamos a criar e sustentar esse cenário. Fomos nós que seguimos a estrada do brejo onde um belo atoleiro nos cerca.
Em vez da mudança a inércia. Resta-nos lançar um número numa caixa de Pandora que apita depois de nos mostrar a imagem de alguém – tudo muito asséptico.
De alguma forma, no entanto, o aceno do figurante demonstra um antítese da criação da cena. O seu silêncio demarca que há um estranhamento no texto. O seu jeito sem jeito faz a marcação da cena artificial em demasia, a sua presença inócua não confere à cena nenhuma integridade, enfraquece a busca pela verossimilhança. O movimento do figurante está na contramão do enredo, uma narrativa castrada, uma vontade escondida de anulação da cena.
Se somos figurantes nesses processos, se somos apenas acenos de contrariedade controlada ou de afirmações sem fulgores, se somos isso nos processos arrastados que comandam, somos também uma força neutra, uma saída à francesa de uma aristocracia esfarelada, de um discurso formulado para a assistência vazia ou muda.
Pode ser que as personagens busquem a deixa do aceno de cabeça dos figurantes e pode ser que eles não estejam mais lá para que a cena se dê.
O que queremos mesmo é nossa vibração de volta, a solidão - antídoto da aglomeração das massas guiadas. O que queremos mesmo é retomar nosso prazer, longe desses líderes estranhos e estrangeiros. Para longe do espírito de gravidade. Eis que queremos respirar um ar de montanha.
O que queremos mesmo é abandonar essa novela chata, essa direção torpe. Abandonar essa farsa.
O que queremos mesmo é calar essa cena mal escrita .
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