A reflexão, portanto, da qual eu falo, não é uma oposição do consciente contra o espontâneo; é uma espécie de projeção da própria atividade fantástica: nasce da fantasia, como a sombra do corpo, tem todos os caracteres da “ingenuidade” ou natividade espontânea, está no próprio germe da criação, e de fato emana dela isso que eu chamei o sentimento do contrário.
O Humorismo, Essência, características e matéria do humorismo, parte III
Trad. Alan Viola
Salão rigidamente decorado, de modo a figurar aquela que pode ser a sala do trono de Enrico IV, na casa imperial de Grolar. Mas em meio aos antigos pilares dois grandes retratos a óleo, modernos, de grandeza natural. Nessa descrição cenográfica inicia-se a peça Enrico IV, o personagem mais desesperado e mais trágico de Pirandello, como bem analisa Leone De Castris. Assim como Seis personagens à procura de um autor, foi escrita em 1921, ano bem fértil para a biografia do autor, se se pensar na qualidade incontestável das duas obras.
Considerada a obra na qual Pirandello mais se identifica com seu personagem por grande parte da crítica, que parece conhecer a fundo a personalidade do autor, esta peça também causou grande estranhamento no público. Formulada numa história simples, um grupo de amigos abastados resolve, no carnaval, se travestir de personagens históricos e sair em cavalgada. Nesse passeio festivo, o que representava Enrico IV - imperador alemão excomungado - cai e, batendo a cabeça, incorpora em definitivo este personagem trágico . Após vinte anos - que a peça sugere serem leves vinte anos - seu sobrinho resolve curá-lo, por prometer isso a sua mãe. E, em caravana, leva um médico-psicólogo, a mulher que o ex-são amava junto com a filha, donzela sensível, e aquele que seria seu rival e amigo à época.
Enrico IV vive um ambiente cuidadosamente preparado para manter a imagem da corte. Lá estão três escudeiros e um padre para prestar-lhe assistência e formarem seu mundo imperial. Após explicar ao novato funcionário que, apavorado, ali serviria com eles, que estudara a vida de outro imperador ( Enrico IV da França ) e não esse que em breve entraria em contato, é assaltado esse grupo pela visita desse grupo articulado pelo sobrinho. Na ante-câmara vestem-se como emissários desse tempo que já vai longe e que ao mesmo modo se encontra ali, guardado pelo louco. O psicólogo, como sendo dos bons, investiga aqui e ali os detalhes para treinar um laudo, uma saída ou cura para o doente. A perspicácia do paciente faz logo ver ao psicólogo tratar-se de refinada loucura, algo como uma especial enfermidade ocasionada por este choque físico da cabeça com o chão. Um choque que por certo lubrificara a inteligência do louco que, paralisado nesta forma de imperador, tinha inteligência ‘aguda e lúcida’, como afirmaria numa primeira impressão: “ tem perfeita consciência de si por si, diante de si mesmo, uma imagem” que até chegava a “uma melancolia reflexiva”. A preocupação com esse desafio - de lidar com um louco dessa estirpe - faz com que requeira ao grupo imaginação num mesmo grau, no que acabam por sucumbir. Enrico IV faz um joguete comovente com a noção de tempo e a busca de imagens. Eis o que diz ao doutor, fantasiado de Monsenhor, que se curvava inicialmente a seus argumentos, ou por não querer com ele polemizar, ou por estar mesmo surpreendido de não encontrar nada parecido em seus compêndios médicos:
“ Deus me guarde de mostrar desgosto ou maravilha! - Veleidade - ninguém pode reconhecer aquele certo poder obscuro e fatal que assinala limites à vontade. (...) Eis quando não nos resignamos, aparecem as veleidades. Uma mulher que quer ser homem... um velho que quer ser jovem. Nenhum de nós mente ou finge! (...) Monsenhor, a vida! E sois surpreendidos quando a vede de improviso assim diante de vós aparecer fugidia, despeitos e iras com vós mesmos, ou remorsos, também remorsos. Ah, se soubésseis, eu me encontrei com tantos diante de mim! Com uma face que era a minha mesma, mas assim horrível, que não poderia fixá-la...”1
Vejamos bem com que louco foi se meter o doutor, com que caso ele se depara. Aos poucos vai percebendo que ali está realmente um imperador, um imperador das pequenas cenas, alguém que consegue reger sua estranheza, reger seu cotidiano por tanto tempo sabendo-se farsa. Talvez essa a maior das loucuras, que Pirandello tanto sublinha. A um completo estranhamento de si, de sua forma, e ainda assim, avante. Porque se esse louco, mesmo se não soubesse que não era Enrico IV, conseguia manter de improviso uma identidade no trato com seus serviçais e suas esporádicas visitas, esse homem que se improvisava no aparecimento dessas veleidades que ele mesmo acusa, a veleidade que o transformou em um imperador, no afrontar o desconhecido que carrega durante duas décadas, em montar e desmontar toda aquela farsa em sua vida. Pirandello apimenta mais ainda essa sua perseguição pelas formas diante de um fluxo que impunha que se assumisse formas, que estabelecesse formas, diante de vontades severas que forçassem o homem a se manifestar. Aquele homem sabe que não é Enrico IV, revela isso a seus serviçais, revela como se revelasse qualquer outro sonho o imperador a seu áugure. Não importa que ele saiba e sustente isso, importa sim que ele viu que um dia era outro, que uma vez saiu fantasiado de imperador e com a cara no chão, com o tombo sofrido, fixara-se imperador. Ele sabia da representação, a fomentava, e optando cada vez por ela era por ela também representado. Formavam-se espaços especiais em que pudesse circular, as pessoas transfiguravam-se para visitá-lo e ele, nessa absorção, nessa costura de um mundo ultrapassado, festejado e risível numa festa carnavalesca, estava ali alicerçando essa forma. A loucura que demonstra é a representação de todos, ‘nenhum de nós mente ou finge’ diz ao psicólogo. Todos submetidos a uma representação porque tudo pode ser etéreo como tirar ou por uma capa de um imperador - tudo se transforma num sentido vazio e por isso factível. Enrico IV revela ser farsa toda aquela tentativa de atraí-lo para uma atualidade composta por palavras e conceitos, como por móveis e escudeiros. Se opta por permanecer Enrico IV, quando aumenta a temperatura com seu rival que diz ser ele são, e é esfaqueado, morto, prova que não é mais são. Ele vira, naquele instante das fantasias postas, a propriedade de ser outro. Pirandello insiste nisso, nas formas incompatíveis com a vida, nesse trágico moderno. Qualquer forma, a atual, a de um imperador, a da filha de sua amada que está ali, retratada em seu grande quadro. Um quadro que engana o tempo, como ele engana os outros.
Enrico IV está louco - porque quer. Anuncia a loucura a todos, aos serviçais, ao velho padre que toda tarde vem ao seu encontro para rezar, aos visitantes que para entrar em seu mundo de centenas de anos atrás, se mascaram como ele, para tocá-lo nesse tempo, nessa abstração bastarda do tempo. Se ele, louco como poucos, consegue ver toda aquela tentativa dos que o rodeiam para sustentar seu mundo especial, se ele os absorve nisso, ou mesmo, se eles - como crianças - se entusiasmam com a fantasia que lhes dá a senha para freqüentar esse mundo, tudo pode vir a ser assim entrada-saída de realidades provisórias. Seria tudo provisório, a não ser que o médico, que diz não ser taumaturgo, o convencesse de que eleger o que se vive seria escolher sua forma. Pois ele escolheu, ele é Enrico IV, senhor de si, reinando em um momento que se manteve, o que afasta de si admoestações de um presente maquiado que o condena, que o acusa de são. Ele que apenas é essa forma condenada pelo juízo da razão, mas uma condenação sem força para ele que ficou do outro lado do vestíbulo, que se vestiu de outro, afrontando esse tempo dos que tentam persuadi-lo, mas que para isso visitam seu estado e suas impressões. Impressões, a vida! De improviso, a vida. Consistindo diante de nós numa fugidia forma...
1 Pirandello, Luigi. O falecido Mattia Pascal; Seis personagens à procura de um autor. Trad. Márcio da Silva, Brutus Pedreira e Elvira Rina Malerbi Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
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