21/08/2009

Seis personagens à procura de um autor


Seis personagens invadem um ensaio de uma peça de Pirandello. Querem um autor para alinhavar seus dramas, posto que foram abandonadas, depois de criadas ( pelo próprio Pirandello ?):
“ Mas por que - disse para mim mesmo - não escrever um caso como esse, realmente inédito, de um autor que se recusa a dar vida a algumas das suas personagens, já nascidas vivas na fantasia (...) Assim fiz. Naturalmente aconteceu o que devia acontecer: uma mistura de trágico e de cômico, de fantasia e de realidade, numa situação humorística completamente nova e bastante complexa; uma verdadeira tragédia devido às personagens que a vivem e a sofrem já ao respirarem, ao falarem e ao se mexerem. Tragédia que impõe, de toda maneira, sua representação e, finalmente, a comédia que sempre surge da tentativa vã de uma representação cênica feita de improviso”.
[1]
Pirandello chamou essa peça de comedia da fare e o que é um ponto a se discutir neste teatro no teatro é justamente o fato de o autor (Pirandello ) assumir-se o autor desta peça onde as personagens abandonadas pelo seu autor reclamam assistência em ensaio de uma peça ( de Pirandello ). Parece que consegue levar a fantasia a um grau elevadíssimo. Ou mesmo trazer a própria encenação para esta sua introdução à peça.
O diretor que ensaia os atores assusta-se depois de desacreditar na veracidade de que são mesmo personagens os que interrompem seu trabalho, e acabam por obsediá-lo nessa busca da realização. Algum crítico chamou de meta-teatro, o dramaturgo de teatro no teatro, outro de fundação do teatro grotesco, e assim vai cada qual tentando decifrar o talvez um dos textos dramatúrgicos mais desconcertantes da moderna história do teatro ocidental. O que querem essas personagens? Sentem-se angustiadas pela prisão da história, sabem que nada mudará, estarão sempre submetidas ao mesmo desenlace, pedaços de ações, marcações, falas, gestos, etc.
O que querem essas personagens? Sentem-se donas do texto de tanto repeti-los, sabem que o drama familiar vai prosseguir, e que sofrerão. O pai cada vez vai ser surpreendido em ato incestuoso com a enteada - interrompido pela mãe, que sofre. A mãe, já o disse a crítica, é o único personagem humano. Os outros, no sentido de representados por uma ação dirigida, personagens. A mãe sofre. A enteada, agressiva, acusa o padrasto, este tenta convencer o diretor que fora vítima de um engano, há um rapaz que pouco fala, tem ojeriza daquela história e aversão a seus familiares, companheiros da cena, as duas crianças não têm fala.
O diretor entusiasma-se com o tema, o argumento, abandona o ensaio, leva-os para seu camarim, o que fala com eles nesse segredo? Ensaiá-los não precisa porque dão aula aos atores que os imitam - para eles pura mímica de sua falas. Entra a dona do bordéu - a sexta personagem - que só aparece quando não está presente a mãe. Entrada triunfal, ela, obesa, espanholada, contracena com a enteada, sua funcionária, na platéia. O pai, tenso, culpado, tenta se explicar, é ele quem faz a mágica para aparecer aquela enorme personagem, utiliza-se de casacos que, pendurados, criam atmosfera de bordéu para o aparecimento da cafetina. O pai cenografa a cena. Está feita a tragédia, ou a comédia. A partir de cada interesse dos atores, ou do diretor, cresce a cena, materializam-se os personagens. O autor, que eles buscam, parece ser a atenção. A história já existe, e é boa.
O autor, sendo o interesse, a atenção, faz com que vivam, com que passe a se concretizar a cena. A cena precisa da atenção - o teatro especula a relação especular, o speculum da ação é o público que abastece de resposta, apreensão e suspiros a cena, quando a assiste. O diretor se perde, tenta aqui e ali comandar, acomodar em lógicas as falas, mas perde-se em tentativas de alterações. Nada pode fazer, a história já existe. O que interessa mesmo é sua realização. A vontade das personagens sobrepõe-se a qualquer organização extra. As personagens ensinam aos atores como se faz, porque tudo já está feito, em algum lugar isso já se repetiu, ene vezes a cena já se concretizara. O que pode ser modificado? O que pode ser alterado? Senão pequenos detalhes de cenários, pequenos detalhes de feitios diversos, como outros espectadores. O que existe não se modifica, mesmo que ajustem-se, debatam-se, criem-se novos diálogos, nada pode com o já feito. Estão constituídos os personagens de uma história, e ela é o autor. Que buscam, senão demonstrá-la? Ludibriam o diretor, os atores, nessa busca, apenas os atraiem para sua tragédia, ou comédia? São como fantasmas do teatro, como que fabricados no camarim da intenção da própria representação, têm sua força própria, sua dinâmica, a tez do texto decorado - atropelam o que está para ser construído porque se repetem, se manifestam sempre os mesmos.
Pirandello dá um nó no teatro com esta peça. Ainda hoje. Personagens que buscam um autor, ou que buscam o autor? Parecem perguntar quem seria capaz de modificar seus temas, temem pelas suas vidas mas elas se repetem ad nauseam, o que lhes assusta mais é a eternidade, querem um outro fim, sucumbem no intento dessa busca e driblam a intenção de quem vê possível alterar suas direções. Cantam a pedra do que vai lhes acontecer com uma firmeza de que é isto mesmo, assim foram criados. Onde está esse autor que os deixou sobre a mesa, perdidos, feitos e abandonados à própria cena - e acenam perdidos para a platéia que os assiste para que nessa assistência os façam viver, essa platéia transparente que é o representar a si mesmos. Não existe outra forma para a vida - eles sabem disso, e acabam satisfazendo-se com o próprio destino incompleto que o autor desconhecido lhes traçou. Nota-se que se a mãe parece humana em seu sofrimento, é, no entanto, a mais frágil, parece que vai sumir a qualquer momento. Quanto mais artificial for a busca de se mostrar natural maior o convencimento, são personagens à toa, à deriva no procênio. Quanto mais a vontade de se mostrarem, mais intensa a apreensão da cena. A maquinaria da cena. O humorismo da cena. Para encenar basta começar. Eles já estão preparados - e sugam qualquer outra alternativa que não as deles - porque já são. O diretor não pode dirigir, o ator não pode ser o personagem - forma criada que está ali, solta, a advinhar o que já está descrito, excessiva. Se existe angústia, seria a de não se realizar nada, esta torcida para que outra história surgisse num labirinto - mas não há outras saídas, só uma: a do palco - espaço da existência deles. Um espaço que seria de invenção, mas subvertido, tona-se o espaço das suas aparecências.
Distorcidas as funções, determinados os papéis, começam - que era o simples desejo deles; quem se atreverá a entrar nesse jogo? Quem ousará a ser autor? Responsabilizar-se por destinos. Tramar destinos, quem pode? Quem autor para isso? E, começado o jogo, rodada a roleta das falas - entrecortadas com opiniões de quem as vivenciará - quem tangenciará qualquer mudança, alteração no corte do determinado, no pontiagudo do já escrito, mesmo que em pedaços. As cenas se sucedem, fabricam-se com tal consistência que resta por fim uma tela (um ectoplasma de seus cortejos) onde quase todos desfilam - em sugestões de suas imagens - na consciência do público, voando imutáveis para outros palcos, sombras do realizado, fantasmas da imaginação, representação máxima da vontade de existir.

[1] Prefácio de Seis personagens à procura de um autor
Brutus Pedreira e Elvira Ricci, trad. Brutus Pedreira; abril cultural, 1981.

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