Quem põe o nariz fora da porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência Havas é melancólica. Todos os dias enche os jornais, seus assinantes, de uma torrente de notícias que, se não matam, afligem profundamente. Ao pé delas, que vale o naufrágio do paquete alemão Uruguai, em Cabo-Frio? Nada. Que vale o incêndio da fábrica da companhia Luz Esteárica? Coisa nenhuma. Não falo do desaparecimento de uns autos celebres, peça que está em segunda representação, à espera de terceira, porque não é propriamente um drama, embora haja nela um salteador ou coisa que o valha, como nas de Montepin; é um daqueles mistérios da Idade-Média, ornado de algumas expressões modernas sem realidade, como esta: — Ce pauvre Auguste! On l’a mis au poste. — Dame, c’est triste, mais c’est juste. — Ce pauvre Auguste! Expressão sem realidade, pois ninguém foi nem irá para a cadeia, por uns autos de nada.
Foi o Chico Moniz Barreto, violinista filho de poeta, que trouxe de Paris aquela espécie de mofina popular, que então corria nas escolas e nos teatros. Lá vão trinta anos! Talvez poucos franceses se lembrem dela; eu, que não sou francês, nem fui a Paris, não a perdi de memória por causa do Chico Moniz Barreto, artista de tanto talento, discípulo de Allard, um rapaz que era todo arte, brandura e alegria. A graça principal estava na prosódia das mulheres do povo em cuja boca era posto esse trecho de dialogo, — e que o nosso artista baiano imitava, suprimindo os tt às palavras: — Ce pauvr’ Auguss’! On l’a mis au poss’! — Dam’ c’est triss’ mais c’est juss’! — Ce pauvr’ Auguss’! — Pobre frase! pobres mulheres! Foram-se como os tais autos e o veto, le ress’!
Mas tornemos ao presente e à Agência Havas. São rebeliões sobre rebeliões, Constantinopla e Cuba, matança sobre matanças, China e Armênia. Os cristãos apanham dos muçulmanos, os muçulmanos apanham de outros religiosos, e todos de todos, até perderem a vida e a alma. Conspirações não têm conta; as bombas de dinamite andam lá por fora, como aqui as balas doces, com a diferença que não as vendem nos bonds, nem os vendedores sujam os passageiros. Os ciclones, vendo os homens ocupados em se destruírem, enchem as bochechas e sopram a alma pela boca fora, metendo navios no fundo do mar, arrasando casas e plantações, matando gente e animais. Tempestades terríveis desencadeiam-se nas costas da Inglaterra e da França e despedaçam navios contra penedos. Um tufão levou anteontem parte da catedral de Metz. A terra treme em vários lugares. Os incêndios devoram habitações na Rússia. As simples febres de Madagascar abrem infinidade de claros nas tropas francesas. Pior é o cólera-morbo; mais rápido que um tiro, tomou de assalto a Moldávia, a Coréia, a Rússia, o Japão e vai matando como as simples guerras.
Na Espanha, em Granada, os rios transbordam e arrastam consigo casas e culturas. Granada, ai, Granada, que fases lembrar o velho romance:
Passeava-se el Rey MoroPor la ciudad de Granada...
romance ou balada, que narra o transbordamento do rio cristão, arrancando aos mouros o resto da Espanha. Relede os poetas românticos, que chuparam até o bagaço da laranja mourisca e falaram delia com saudades. Relede o magnífico intróito do Colombo do nosso Porto-Alegre: Jaz vencida Granada… Nem reis agora são precisos, pobre Granada, nem poetas te cantam as desgraças; basta a Agência Havas. Os jornais que chegarem dirão as coisas pelo miúdo com aquele amor da atração que fazem as boas notícias.
Não é mais feliz a Itália com o banditismo que renasce, à maneira velha, tal qual o cantaram poetas e disseram novelistas. Uns e outros esgotaram a poesia dos costumes; agora é a polícia e o código. Parece que a grande miséria, filha das colheitas perdidas, cresce ao lado do banditismo e do imposto.
Na Hungria dá-se um fenômeno interessante: desordeiros clericais respondem aos tiros das tropas com pedradas e bengaladas, e há mortos de parte a parte, mortos e feridos. É que a fé também inspira as bengalas. Eis aí rebeldes dispostos a vencer; não se lhes há de pedir que desarmem primeiro, se quiserem ser anistiados. Desarmar de que? A bengala não é sequer um apoio, é um simples adorno de passeio; pouco mais que os suspensórios, apenas úteis. Úteis, digo, sem assumir a responsabilidade da afirmação. Não conheço a historia dos suspensórios, sei, quando muito, que César não usava deles, nem Cícero, nem Poncio Pilatos. Quando eu era criança, toda gente os trazia; mais tarde, não sei por que razão, elegante ou cientifica, foram proscritos. Vieram anos, e os suspensórios com eles, diz-se que para acabar com o mal dos cozes. Talvez se vão outra vez com o século, e tornem com o centenário da batalha de Waterloo.
Assim vai o mundo, meu amigo leitor; o mundo é um par de suspensórios. Comecei dizendo que ele não me parece bem, sem esquecer que tem andado pior, e, para não ir mais longe, há justamente um século. Mas a razão do meu receio é a crença que me devora de que o mal estava acabado, a paz sólida, e as próprias tempestades e moléstias não seriam mais que mitos, lendas, histórias para meter medo às crianças. Por isso digo que o mundo não vai bom, e desconfio que há algum plano divino, oculto aos olhos humanos. Talvez a terra esteja grávida. Que animal se move no útero desta imensa bolinha de barro, em que nos despedaçamos uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra social, nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou de raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárbaros, uma nova moral, a queda dos suspensórios, o aparecimento dos autos.
Machado de Assis
Gazeta de Notícias Rio de Janeiro, em 6 de outubro de 1895.