28/03/2011

Nietzsche pra toda obra

Já percebi uma coisa, e posso estar certo: quando a pessoa quer dar um certo ar de, ou se mostrar sofisticado, antenado ou mesmo que está além, pós-acadêmico formal, lasca um Nietzsche. De análises domésticas a políticas menores - nessa eleição faltou dizer que um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos - lá vai Nietzsche passear nas citações. Traz força. Ou forca para os argumentos contraditórios. Talvez de toda guerra surja alguma vontade, algo que justificasse a ação suja, e nada - apenas o efeito de uma explosão: não gosto de pessoas que, para ter algum efeito, necesitam estourar como bombas, e junto às quais há sempre perigo de perdermos subitamente a audição - e mesmo alguma coisa a mais.


Nietzsche está sempre aí, disponível para ser sacado, pinçado e diluído em tudo que possa parecer definitivo. Nada menos ele. Ninguém surgiu ainda menos avesso a ordens e seguidores. Ninguém como ele conseguiu desenhar uma longa ponte e revelar que o homem é uma corda sobre o abismo, e se o homem é um trânsito também deveria afirmar esse devir absoluto. Um pensamento humano, mas um humano que se recusa adorar o fogo em noite gelada - quem seguiria? Mas lá vem ele nos textos para denunciar falcatruas, ironizar pediatras, cutucar o feminismo tardio, o ocaso do ser, romper a esfera cinza da alta burocracia, enfeitar o workshop do marketing direto. Surge também, às vezes mais firme, em reforço a Marx ( que, gasto pela ação dos seus seguidores perdidos, precisa de umas certas vitaminas ), já o vi colado ao seguimento de Freud, numa capa de Tirésias – anunciando tiradas proféticas sobre o ego, pulverizando porões. Como seria uma análise nietzschiana? Seria na onda da tensa pantera não salta porque pensa do Uchoa Leite? Ou a outra onda andante e flexível do seu vulto/em círculos concêntricos decresce:/dança de força em torno a um ponto oculto/ no qual um grande impulso se arrefece de Rilke/Augusto?


Uma vez fui a uma festa que era para comemorar a data de sua morte! E muitos riam sem perceber, talvez, que o tempo cruel enferrujaria mais ainda a noite ( toda a alegria quer a eternidade ). Um curso que frequentava era somente sobre a tradução de seus textos e às vezes, quando o curso engasgava em um neologismo impossível no alemão aglutinado, eu lançava minha psicofonia vinda de uma simples tradução no colo, era uma espécie de mediunidade - e ali ficávamos depois, em algum silêncio, reverenciando seu pensamento em português, rs ( que é assim que se marca hoje no texto da rede o riso, pra pessoa saber que é pra rir ).


Ninguém mais amaldiçoado que ele retorna assim, refeito, retocado, por fricortes arabescos e emblemas truncados, ziguezagueando por entre os becos comuns. Nietzsche sóbrio vive, se bobear, até nas revistas de cabeleireiros, inflado por um recorte em itálico abaixo de spas revigorantes, spans de tintas coloridas. Queria mesmo era lembrar em que livro vi uma foto sua, nu, à beira do Vesúvio acompanhado de jovens dionísios esperando talvez um banho de lava. Mas não posso citar imortais em texto dedilhado no escuro. Aos imortais o respeito, a Nietzsche o que não lhe pertence.


Sim, defender os fortes contra os fracos ( eu li isso ontem, mas por que os fortes não abarrotam logo um estádio, vários teatros e salas e acumulam milhões de moedas para levar a poesia à ágora eletrônica? Os fortes não precisam de incentivos.).


Tudo que não me mata me fortalece ( já vi essa em rodízio de massas, ou foi num talk show? ).


Ora ora, gente gente, vai usando o vate assim, depois aprendam a voar, sem a rede embaixo - o abismo sempre o acompanha, mesmo disfarçado por estátuas de gesso. Ele o ignora porque o revela, e traz o amuleto da arte para se proteger - quem mais traria?


Nietzsche em porções multiplica-se, como se a homeopatia freqüentasse também o pensamento. Logo a teologia da superação lança mão desse poço sem fundo, desse múltiplo fraseador ritmista. Basta que seja inventada.


Ou um Nietzsche-guia de auto-ajuda para o cidadão moderno: acabei de ver que existe e está disponível em todas as boas livrarias.


Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma gargalhada!


Olha lá, povo desperto: ditirambo não é deuteronômio. Aforismo não é salmo.