08/06/2011

Uma frase no poema

Quando me disseram que o fim da literatura foi decretado entrei em pânico. Corri para o computador para uma busca fatal, como se corresse em um corredor de uteí.
Havia um compasso de não deixe o samba morrer nisso, eu buscava alguma oxigenação possível, algum desmentido repentino, um dizer de zombaria, cheguei mesmo no espaço onde essa revelação se dera, ainda que essa audácia em ver me lançasse também para o poço – me levasse junto nessa morte horizontal proposta.
Era verdade, estava escrito na parede. Cheguei a ver ainda um pequeno curto-circuito de fios azulados que pendiam de uma cam desligada – o site poderia se incendiar.
Pensei em me vingar e lançar meu estupendo romance ainda não escrito para o esquecimento do delete futuro, lá, onde ninguém recupera. Pensei ainda na acidez dos que lêem os contemporâneos com os olhos da severa perfeição dos que os antecederam, sem perceber que lá estavam os romeros prontos para deter surgimentos – ou insistem, pior, que eles não sejam mais referência, como se o tempo não viesse quase sempre anular as datas. O campo estava minado.
Não seria possível que somente eu, como leitor, estivesse assim tão iludido com o deleite irresponsável de tantos textos. Busquei ali e aqui alguma teoria para refutar os experts, reli Barthes para ver se afinal o tal fulgor tinha mesmo se apagado, e toda apologia me pareceu inócua. Tentei ainda uma mantra mallarmaico, uma vibração rimbaudiana, reli um Baudelaire: E cujo olhar me fez renascer de repente – a esfera francesa. Nada se modificava. Julguei que talvez fosse preciso estar dentro do processo, sentir suas artimanhas – de alguma forma ser um visitante convidado.
Tentei alguma alquimia para sobreviver ao precipício, e comecei a relembrar os textos que realmente me envolviam. Tentei ver o crítico em mão dupla, mas por desgraça me lembrei que ele sucumbiu em trânsito, nos limites da fronteira, nas passagens dos perigos. Tive tempo ainda para reavivar meu ódio aos nazis. “ Como vê caminhos por toda a parte, ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada.” Busquei lembrar, num salto, que as margens eram olhos e “o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados.” Fugi para o Oriente “Basta entoar esta frase e a abundância da terra desabrocha. A imaginação se afoga antes mesmo que se termine de pronunciar a frase.” E uni nesse reforço a torres “que sobem e sobem como escadas angélicas em direção ao céu azul e luminoso, ostentando no alto, entre bandos de corvos, verdadeiras multidões de esculturas gesticulantes” - “essas noites estão sempre à minha espera.”– as minhas frases dos outros. Não satisfeito, ainda tentei algo mais e busquei “ Que floresçam fantasias segundo a moda do dia”, “porque se as pedras dão vozes, voam, são animadas de um sopro, de respiração própria, também as estátuas sopram, decerto o espírito de Deus”- “ e visto que se não se pode fazer com que caiba em um nome muito mais duração que espaço”.
Seria como se os textos tão diversos se colassem em um único. Era uma espécie de oração, um chamamento - eu chamava de volta a literatura, implorava sua ressurreição.
Desprezando a técnica tão bem ensaiada dos que manjam da criação, ainda tentei dispensar, por uma janela esquisita, os petardos que insistiam lançar para que os autores se calassem– se matassem engolindo os verbos arbitrários, os adjetivos seminados.
Como? Como se calariam deixando o silêncio baixar por ordem do decreto?
Busquei na minha pequena biblioteca algo que retirasse de vez esse veneno, alguma passagem, terceira margem que se criasse para além dessa Cila e Caríbdis. Um não-monstro que permitisse a passagem do narrador. Algum alargamento que diluísse o estreito do final, uma pinguela que fosse, alguma asa improvisada. Onde, onde estariam os outros? Os que impulsionam as leituras, os co-criadores, os que buscassem a criação para aumentá-la, os que lançassem sobre ela o pó de Apolo, que mantém intacto um corpo dilacerado? A imagem de que o mar não sofre o que morre, do que li, me feria a visão. Eu preferia o cuidado com o balanço da canoa () do ponto que ouvia envolvendo a corda-bamba do movimento.
Uma certa crença na superação da malandragem, destituindo os camerlengos.
Que deus anti-deus soprou afinal esse despacho? Seria a lasciva previsão do não presta? Seria o chamamento para uma crise que não vinha? Seria de fato o desprezo do excesso, do ruim fragmentado que chega a toda hora ancorado pelos bytes infinitos? Ou uma secura generalizada, como uma peste?
Que riso canhestro poderia ainda confirmar tal ruína? Se o poeta diz taça – poderia estar dizendo sobre o adorno? Se em São Paulo você pede pingado, eles te servem uma média. Se você busca o belo, mas ele já se foi. “Uma meta existe para ser um alvo Mas quando o poeta diz: "Meta" Pode estar querendo dizer o inatingível”
Nada, não buscaria me aparelhar – e isso não é difícil – para colocar diante da leitura uma proteção de bronze. Nada, eu queria mesmo era buscar um fluxo descompromissado que deslocasse as palavras em sentido imperfeito, uma navegação própria do adivinho que sequer ouvia mais o grito à direita da ave: vá. Que fosse o prazer inundado de uma história simples, e parecia tão antiga, que fosse um simbólico verso que atravessava o tempo vindo cair numa colagem suspeita. Eu talvez buscava inebriado a verve do crítico que se lia, as portas fechadas do texto não-citado, algum jardim de lírios explodindo no sol. Se na minha leitura o que valesse seria a imagem esculpida em estalos inspirados, se o que valesse era a elaborada intenção de se parecer inútil, um espiralado desenho. Atravessei a madrugada tentando defender meu prazer de leitor, acendendo na memória a estrela que se apagava em curva. E quando o sol surgiu trazendo aquele ventinho gelado, algo me assaltou: um arrepio me fez perceber que não falávamos da mesma ação. Que antimágica rodeou o ori do poeta da prosa? Que paura invejável dos que percebem os perigos sutis. Se alguém escreveu para além da leitura, se outorgou sem nada apenas seus rabiscos. Depois de um império breve onde tudo deveria ter significado ( e mesmo visual ) agora algo que se intrometesse para além da caneta vermelha, e escapasse do retorno fulminante do não vai dar, um rompimento sem querer com a opinião. E ficou assim, um retorno para um espaço etéreo, uma localização sem pegadas, um artifício inacabado.
Os que liam e pediam o silêncio não freqüentavam mais o meu olhar diluído. Estavam em função, dissecando algo talvez que não lhes pertencesse – porque escapados dessa luminosidade anunciavam um fim. E mesmo a simplicidade desse pensamento – tão fácil de se aprisionar e desmerecer – tinha um vigor, um mistério inalcançáveis.
Eu poderia ler de novo, recuperava a liberdade dos que lançam em direção ao desconhecido um abraço descartável.
Eu poderia ler sem culpa os velhos e os novos, pois que o tempo inscrevia quem nele estivesse por acaso. Ler o poeta mais ou menos eu poderia. Admirar o contista ingênuo eu poderia, eu poderia me deleitar com o romancista imitador dos clássicos, da edição do autor, eu poderia linkar o atônito anônimo de um blog sem marcas e sem visitas.
Eu poderia dizer sim aos que perguntam na porta dos centros culturais com seu livrinho na mão: você gosta de poesia?
Que algo se movia em direção a essa generosidade, e higienizava toda sentença ácida.
Foi o poeta que a ditou
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram.