28/09/2007

Pharmacia


A moça do caixa da farmácia está na sua hora de almoço. Seu rosto não esconde a contração da fome. Entrego-lhe os produtos e a arma eletrônica não consegue lê-los. Três vezes a pistola apita, rejeitando o ato, negando seu faro. A moça em segundos traz seu olhar de ódio – que se desfaz ao largar o objeto.
Um xarope de guaco – e a moça parte pela digitação, desleixada, como se apertasse qualquer tecla. Ela toca em ruído o total de teclas. Uns 23 números para descobrir o preço do xarope de guaco. Com a mão esquerda prende a caixa e eu olho a quantidade de coisas que me cegam. A moça do caixa esquece a fome. Seu rosto não esconde a contração da mão.
Adianto:
- Só vou levar isso.
Ela finge não ouvir. Espera paralisada que eu lhe dê mais alguma coisa.
- Só isto moça.
- Cinco.
- Sei, aqui.
Saio, abro o xarope e bebo o guaco doce. Respiro. Aquela moça... eu fiquei com umas impressões de que tudo pode ser igual.
Mas a esquina engoliu meu passado, e logo vi o homem da perna de pau em meio a um trânsito pesado. Habilidoso homem que desfila na Paulista como se estivesse na Rio Branco. Mas o fato que apagou o passado foi sua queda pelo cavalo enlouquecido, foi uma queda espetacular – dinâmica. O cavalo chegou a cantar em meus ouvidos – em cima, a expressão do seu condutor era a de ser conduzido. O guarda guardava o nada, com cara de nada. Os olhos oblíquos do cavalo ainda conferiram o resultado da barrigada, e o homem de pernas de pau se desmanchara em três metros. O cavalo foi seguro, mas o homem da perna de pau ferira um senhor, parece que gravemente. Busquei que lhe dessem ar – coisa rara na avenida. Ele tinha a testa aberta e os olhos apagando. A perna de pau quebrara em sua cabeça. Ele arquejava. Foi atendido, rasgada sua camisa de cambraia, seu terno marrom. Balbuciava um socorro.
- Leva no cavalo, ordenou um mendigo. Ignoraram…
- Chame uma ambulância – implorou uma senhora
- Não toquem nele, gritou o homem de perna de pau, já solto delas. É proibido.
O homem deu um tremelique, soltou um sangue escuro e desmaiou ou morreu, porque chegava o bombeiro isolando-nos daquilo. Olhei meu xarope, eu tinha bebido todo o frasco.
Não havia comentários, o absurdo imobilizava comentários, isolava os olhares. Me enfiei num ônibus para sentir a fumaça nos cabelos. A cidade estava seca e sem ar, como minha garganta. Ao meu lado, em farrapos, o homem da perna de pau, rígido, chorava baixinho...

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