29/05/2009

Uma leitura dos Gigantes da Montanha

Ilse é a protagonista do ato absurdo, que, cercada pela sua trupe mambembe e seu marido aristocrata, demonstra sua dor trágica e o transe incontrolável. Ilse declama a peça desde o início para montá-la no final, e isto é afirmado na prerrogativa de que ao assumir o suicídio do poeta por ela, tem que trazê-lo à vida de volta, com seu próprio texto. O mesmo texto que marca o fim de sua vida, marca também o fim da vida de Pirandello, pois que morre duas vezes( tal como seu Mattia Pascal na sua cidadezinha e no Tevere ).
Ora, quando o mistério da arte se atreve a interferir na vida e na morte, as coisas começam a ficar por demais, e Pirandello já se superava ao máximo em Mattia, em Seis personagens e em Enrico IV. Com os Gigantes da Montanha leva ao paroxismo essa intercessão.
O que se pode dizer de diverso desse enunciado trágico? O que se pode escrever - se o epílogo quem conta é o filho via as lembranças do pai?
A morte teatral de Pirandello é duas vezes teatral.
Se há o crítico[1] que faz um elaborado e rítmico estudo sobre a importância do número nove e da cabala na obra de Pirandello, há a indicação também do duplo, tão apreciado por Pirandello.
Um duplo de mãos transversais, diga-se de tão transversais, que saem do proscênio para a cadeira como se o susto fosse uma prerrogativa natural do viver - o riso e a carranca. Pirandello anuncia sua morte, e quem a revela e chora por ela é a atriz-arte que a materializa. O mundo enevoado dos gigantes recai no mito. E o mito se torna lenda no contexto da fábula do poeta suicida.
O suicídio torna-se nascer - e se revelar.
Pirandello manifesta em Os Gigantes da Montanha algo entre uma metafísica impossível e um trágico cortante. A metafísica do lékos - do lugar, do pouso - e o trágico do lokos [2]- da emboscada, da existência.
Entre o lugar do pouso e a emboscada, entre o transversal e o linear está a arte. A arte que para ele tinha uma existência de deusa pagã.
A arte que ele incensa para perfumar o ar carregado que o senso comum consegue, em todos os tempos, sustentar.
Pirandello constrói, como uma Penélope, seu tapete mágico - e transversa o tecido de tal maneira que a crítica dessa peça se afasta, como se afastavam os comuns da Esfinge na entrada de Tebas.
A estrada que Pirandello escolhe não é a de Damasco, não é a encruzilhada da simples escolha imediata. Pirandello escolhe a estrada que o leva à esfinge, sabendo que a via transversal a ela sempre leva, por ela sempre passa, marcando com um xis o perigo do encontro, montando o confronto. E para ele, assim como disse tempos depois Artaud, “a qualquer pergunta da esfinge a resposta seria: O Homem!”
Confrontos vários. Em os Gigantes, confronto dos mambembes com os Scapigliati.
E se o mambembe tem o ar romântico do sedutor-anunciador da arte, os scapigliati tem no canto da boca o riso de que nada será resolvido com ela.
Pirandello tem a intenção da esfinge, e ela pode ser a consciência que engoliu o instinto, e por isso vocifera o perigo, mas ela pode ser o instinto disfarçado em razão, nas suas nuvens de poeira e pedregulhos.
Édipo está nessa transversal, ele que mata o perigo para se tornar o próprio.
A assimilação da máscara torna-se o rosto, a face em suas nuances de espera. Pirandello espera, ele sabe que os Gigantes estão lá, no alto, no Pantheon do meio-dia, os gigantes conquistadores da natureza e que esperam também, porque sabem do pôr do sol. O pôr do sol de Pirandello é o próprio texto montado pela Companhia da Condessa, esse o seu tramonto - e o texto que sobra, de Estefano, seu filho, tem o tom de uma narrativa épica, homérica, como o filho de Ulisses, Telêmaco, anunciando a busca da notícia - a morte do pai, tão desenhada para ele, tão fictícia para o leitor, mas nem por isso vazia de uma emoção nobre. Estefano está na transversal do discurso - ele anuncia o reviver da criação do pai Pirandello, e esse mesmo reviver o pai conta no texto da atriz que ressuscita o poeta morto na dramaturgia do último ato.
Homérico o texto, e por isso o Mito anunciado por Pirandello. As duas vias transversais, os dois sinais - verde e vermelho. O avançar e o parar. Ilse só pára quando do esforço supremo, máximo em reviver o poeta, e emocionar o público insatisfeito. Pirandello só pára quando os Gigantes descem e se manifestam nos muros. O muro que se estabelece entre a comunicação e o silêncio, entre o revelar e o esconder, numa dialética definitiva.
O que Pirandello desenha nos atos dessa peça, Stefano desfaz em “ me recordo do que meu pai pensava e dizia...”. A peça, na atmosfera onírica, prenuncia a recordação, mas faz o sonho ser visível sem quebra de continuidade. Traduzir Pirandello nessa peça não permite chaves. O texto está aberto, ele está na praça como os Mambembes, mas está igualmente aberto no sarcasmo inocente dos Scapigliati.Sem chaves, mas com muros. Divisas das ruas transversais, o escuro do não revelado ao entardecer do revelado. Da sombra do sol ao claro luar . O vai e vem do contraditório, e o vai e vem do correto. Há, na peça, a carroça com o feno. O feno que preenche o espaço da turbulência se contrapõe ao pesado da estrutura. Mas o que transporta o leve é o pesado, eis a carroça com o feno! A arte embrulhada, protegida no feno, a arte casca de ovo. O claro-escuro das luzes, o claro-escuro do texto. Monta-se a farsa, a farsa é o real. Sonha-se sempre o mesmo sonho, o sonho é a realidade.Pirandelo assume o espírito do poeta suicida - o tempo o mata, ele se mata no tempo: as duas vias transversais se cruzam e se tornam únicas em pouco espaço. Há pouco espaço para o único, mas é o espaço que fica e o que sobra na importância das ruas.
[1] Umberto Artioli em Pirandello Alegórico
[2] Luigy Pareyson: I problemi Attuali dell’estetica

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