07/09/2009

Paz no futuro e glória no passado.

Se tenho alguma relação com essa data de sete de setembro, ela está retida em fragmentos da infância. Lembro-me que éramos obrigados a cantar todo dia, em fila e com a mão no ombro dos colegas, em formação, o Hino. Era um ritual desgastado pelo cotidiano. Uma ante-sala para as aulas repetitivas dos professores oprimidos. Muitos não gostávamos dessa enfadonha necessidade escolar, mas como poderia uma criança ir de encontro a uma ordem de um sistema? Já entrávamos para a formação no pátio.
Um sistema que pairava como uma nuvem chumbo sobre nossas cabeças sem revelar ao certo o que ocorria. Havia um medo escondido nas escolas, isso captávamos. No colégio estadual tínhamos um sistema de som que vigiava as aulas das professoras. Uma caixa de som marrom fixada sobre o quadro-negro, um câmbio com o poder da diretora Dilma. Uma vez eu falei a palavra comunista. Perguntei a professora de história porque xingar uma pessoa de comunista era assim tão ruim? Saiu assim, sem querer, num questionamento infantil. Quando não gostávamos de alguém: seu comunista! Vou falar pra todo mundo que você é comunista! Uma ameaça. Era uma infância contaminada pelas instituições, engessadas pela ditadura. E a professora foi chamada imediatamente pela direção, disso me lembro. Me olhavam, no recreio, como se eu pudesse, aos nove anos, contaminar a ordem nacional. Fiquei de castigo nesse dia. E minha irmã foi bater boca, dentro da cautela, com Dona Dilma: que criança fala as coisas sem saber etc.
Hoje acho que o sobrenome Viola tinha uma força negativa, pois remetia imediatamente ao verbo, e não à cor, em italiano.
De família anarquista, nem imaginava que sair às ruas nas paradas para honrar a pátria era minha obrigação. Honrar a independência passava pela honra dos militares, e os símbolos ficaram assim, exilados, em minha lembrança. A bandeira, o hino, tudo sempre remetia à época de uma reverência à força dos militares, de uma submissão que nem passava perto de meu interesse, ou de minha famíla. Lembro que tinha uma colega que o pai estava sumido – isso era um assunto proibido na escola. Era como se na família dela uma doença contagiosa e terrível ameaçasse toda a comunidade. Era uma criança, a Joana, que muitos evitavam. Mas ela se vingava ao cantar o hino e, como uma Danusa antecipada, misturava as estrofes, atrasava a melodia. Embolava a homenagem máxima à pátria. Sempre o riso perigoso era preso por mim e meus colegas, próximos a ela, que fazia uma cara incrível de séria. Sua voz, fina, feria a harmonia. E ninguém podia fazer nada, porque a mão no peito impedia movimentos. Apenas os olhos da temida Dona Dilma buscava aquele som estranho, desafinado e dissonante, sem nunca encontrar, pois protegíamos Joana, nossa guerrilheira.
Na minha ida à Aeronáutica, para o serviço militar, sequer agüentei um mês. Esquecia de fazer a continência inesgotável, não era apto ao sistema rígido das repetições que domesticam para a obediência. E, posto lá por uma amiga do coronel, espírita positivista, saí pela porta dos fundos feliz da vida. E também ficou feliz meu pai, que tanto lutava pela minha inclusão no excesso de contingente.
Hoje leio que o país vai gastar 22 bilhões e meio de reais para comprar helicópteros e submarinos da França. Minha intuição estava certa: somos riquíssimos. Cada vez mais surgem montantes aos montes revelando isso.
E nos preparamos para montar um arsenal daqueles, esperando o inimigo – caso ele venha atrás do petróleo enterrado abaixo do fundo do Oceano.
Independência ou morte. Brasil, dos raios fúlgidos. Em teu peito, ó liberdade. Seio.
Se o governo me ouvisse, eu diria para ele gastar esse montante astronômico na restauração das linhas férreas. Só uma parte já seria suficiente. Ligar o país de novo com os trens. Se o governo Lula tivesse investido nisso, poderia até não contar com esse número altíssimo de aprovação revelado nas pesquisas ( e eu já fiz essas pesquisas, conheço bem: o governo está tão em alta que o presidente, diretamente envolvido na disputa em São Paulo, perdeu a eleição para um candidato desconhecido, de fala complicada e sem filhos. Sua candidata era mais conhecida que minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá ).
Ele, o governo, ao menos poderia sustentar que deu uma certa mobilidade ao povo, na contramão de Juscelino, fazedor de autos, permitindo a ligação dos lugares pelos trens. Será que nesses sete anos ninguém nunca soprou essa idéia tão útil nos ouvidos do presidente? Nenhuma Joana para cantar atravessado o hino dos investimentos?
Mas como aprendi na escola, cada vez mais estamos perfilados, com as mãos nos ombros dos colegas balbuciando um hino que nos revela:
Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha essa grandeza.
E vamos, todos, como na aula de história, pensar o passado – outra imagem do hino: Paz no futuro e glória no passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Meu blog de gaveta.