13/12/2009

Apenas um domingo de cão

Eu sei que o vizinho levou sua mulher corpulenta e seu filhote sapeca ruim de bola para algum lugar longínquo – seu carro ficou esquentando na manhã por uns 10 minutos. Carro a álcool.
Mas o vizinho se esqueceu do cachorro – e ele desde às 09 e 15 desse domingo frio de fim de primavera emite um som melancólico. Algo assim: inhauuuaoô. Saí, comprei a Folha que nem abri e cá estamos nós: eu, o domingo chuvoso e o vira-lata abandonado do vizinho. Na Europa, os franceses ( acho que mais por lá ) abandonam os cachorros nas ruas quando viajam no verão. Na volta arrumam outros, adotam ou compram. Uma maldade, nenhum sentimento com o animal existe nisso. Mas também vi na Itália muitos levarem seus cães para campings, bares, nos carros velozes. Na Alemanha eles trocam a criancinha por um belo pastor e eles estão embaixo da mesa dos bares, nas praças, fazendo cocô na neve, te cheirando as partes nos trens.
Esse vizinho certinho, metódico, consegue arrumar direitinho seu cotidiano: aos domingos ele sai com sua família programada e larga o pequeno cão preto e branco a chorar seus inhauuuaoôs milhares de vezes, compassado. Já fiz de tudo para esquecê-lo. Já ouvi Brian Eno, Sivuca, Meredith Monk, Tetê, Tom, fiz pastel ao som de todo mundo. Bebi a cerveja aberta, tomei café com canela. Já li poemas de Marco Lucchhesi para ver se entendia o mundo de lá, já li um ensaio do Prof. Luiz Edmundo Bouças Coutinho sobre António Botto:
"António Botto estende novas realizações estéticas, com estratégias de imagens poeticamente idealizadas. Como aclamação de um esteticismo movedor de sucessivas invocações do desejo, na persistência especular do corpo-poema, ele reaquece os sonhos sobre a beleza viril, insistindo no desafio de saber celebrá-la. Assim, as miragens bottianas de “beleza na forma” ajustam-se à feitura visceral de versos que – instigados por imagens físicas – espelham e espalham “corpos em dispêndio”.
E me senti poeta mesmo com
O poeta é o homem que sabe interessar-se pelas coisas que os outros desprezam e não entendem.
Porque eu me interesso por esse choro do cão desprezado, eu entendo o cão – não que não me afete os nervos mas eu já pensei em levar para o cãozinho um pedaço de pão, em gritar da janela: ei fica quieto! Vamos parar hein! Olha, pára! Eu já pensei em sair só, ou com ele amarrado em um barbante, enlouquecido pela chuva ácida. Não existe. Cada vez que penso nisso o tempo passa, mandando para a noite o domingo. Melhor se esse cão tivesse seguido viagem com seus donos. Ele é tão pequeno, tão fácil de se levar, tão portátil, tão amante de seus donos. Eles tinham que levá-lo, isso é uma transgressão com o amor. Pensei em deixar um bilhete para eles, relatando o sofrimento do cão, e todas as agruras que os inhauuuoôs revelavam, mas se eles se irritassem com meu gesto? As pessoas hoje estão por um fio. Porque, acho que não é só em SP, especialmente por aqui a máxima da individualidade impera, com a impossibilidade de comunicação e interferência. Eu me lembrei disso. Uma cara séria da guerra do amanhã. Mesmo que seja uma família cristã que tenha se esquecido do cãozinho na varanda, preso, cantando sua dor ritmada, com seus 1395 inhauuuaoôs. Mesmo assim, pode ser de guerra a tal família evangélica, o santo preservar-se - que o inferno é sempre mesmo o outro.
Ai ai. Domingão de dezembro, que o especialista das Alagoas disse que é a era glacial que chega, para congelar de vez a atmosfera.
E Hermeto mistura tudo na vitrola.

Um comentário:

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